quinta-feira, 20 de outubro de 2011

Pra rir, pra rir (parte 2)


Minha relação com as duas culturas começou até de forma equilibrada. Adorava os Três Mosqueteiros – humanos, com Michael Yorke, e – vejam só – caninos, na versão animada espanhola. Já desconfiava, ainda que de forma inconsciente, de que algo de complexo envolveria uma cultura em que os três mosqueteiros eram quatro. O Equinox de Jean Michel Jarre esteve entre os primeiros LPs não-infantis que frequentaram minhas vitrolas, e eu admirava Prost como piloto, e não Mansell. Por um breve período de tempo, Arsène Lupin disputou com Mr.Holmes o título de personagem mais cativante da literatura. E isso sem mencionar o vício causado pela introdução à leitura de Jules Verne na idade apropriada. Acima de todos esses interesses, pairava a mitologia arturiana, matrimônio de Gália e Bretanha.

Desconfio que tudo começou a decair quando Zico perdeu o pênalti, e a França de Platini-Tigana-Rocheteau derrotou o Brasil em 1986. Comecei a ler Asterix pelas piores histórias, o que gerou uma falta de captura mais definitiva. Houve, posteriormente, sérias chances para uma sedução francofílica, quando Irène Jacob tornou-se objeto de desejo pós-adolescente, mas o contato maior com o pensamento francês durante a universidade, e mais duas derrotas em Copas do Mundo selaram a resistência. Enquanto isso, o universo literário – e principalmente musical – britânico abasteceu anos importantes de formação intelectual e afetiva, indo de Shelley a Stephen Morrissey, de Pink Floyd a Kipling.

A francofilia da educação superior brasileira – ao menos nas chamadas humanidades – não encontrou em mim receptor entusiasta. Hobsbawn sempre me pareceu mais legível que – digamos – Braudel. Enquanto os ingleses e americanos construíam frases na ordem direta e com conceitos compreensíveis, o esforço dos franceses e seus discípulos brasileiros parecia ser o de complexificar o texto, torná-lo tão abstrato a ponto de se poder, dele, extrair-se qualquer conclusão desejada. Não por acaso, a área das relações internacionais, com seus bulls e carrs e waltzs acabou se tornando atraente.


Levou muito tempo – bem mais do que o desejado – para que eu tivesse a chance de experimentar a Inglaterra in loco. Levaria, após isso, ainda mais de uma década para que a França fosse inspecionada. Pessoa-gato que sou, acabei por visitar Paris por um motivo-família: meus sogros passariam alguns dias por lá, em uma época que coincidiria com um período previsto de afastamento da Embaixada. Unindo o agradável ao potencialmente mais agradável ainda, decidimos conhecer (no meu caso) ou rever (no caso da esposa) a terra de Monet e Aznavour.

Nos dias que anteciparam a viagem, procurei criar o ambiente mais favorável possível para uma degustação positiva. Aproximei-me da pouca Paris que conhecia, buscando as referências mais acessíveis, geradas, no mais das vezes, por olhares anglo-saxões. Os primeiros rascunhos de programação de viagem começaram a apontar locais típicos do imaginário pop contemporâneo: o corcunda da minha Notre Damme não era o de Victor Hugo, mas o da Disney; o fantasma na minha ópera tinha o sotaque britânico de Lloyd-Webber; quem melhor retratou meu Moulin Rouge foi um australiano, e não Lautrec; meu Louvre era o princípio e o fim de Langdon, com direito a ajoelhar na Linha da Rosa; e, antes que o sol se pusesse, eu teria de visitar a Shakespeare & Co.

Aparentemente, Woody Allen soube das minhas angústias, e embalou as vésperas da viagem com seu delicioso Meia Noite em Paris. Muito além da homenagem visual prestada, a história mistura literatura e crítica à nostalgia excessiva. Era, provavelmente, o antibiótico que faltava para que eu estivesse completamente pronto. Agora, era só cantarolar as músicas que Claude-Michel Schönberg (ao menos esse era francês) compõs para seus Miseráveis, e me preparar para dias de descoberta. Uma pena a esposa não ter autorizado um bigodinho-de-pierre que eu havia pensado cultivar, para possibilitar imersão e role-play completos.


Paris é uma cidade linda. Por mais simples e óbvia que pareça a frase, dizer de outra forma é querer inventar moda, coisa que deixo para os estilistas. A única cidade tão impactante em termos visuais em que já estive foi São Petersburgo, e esta perde. Em uma comparação limitada a primeiras impressões visuais, Londres não teria a menor chance. Com o passar dos dias, tivemos uma boa impressão dos parisenses, famosos por sua relativa impaciência com os turistas (olha aí os preconceitos sendo desmontados...). Nosso conhecimento limitadíssimo da língua francesa – e, talvez, o momento econômico forte do Brasil - foi o bastante para amolecer um pouco os locais. Mesmo quando precisamos recorrer ao inglês, em alguma pergunta ou explicação mais elaborada, não tivemos maiores problemas: fomos recebidos com sorrisos e respostas educadas... mas sempre em francês...

Ouço Flávia dizer, sagazmente, que Londres é prêt-à-porter e Paris é haute couture. Cerveja e vinho, talvez. A tentativa de comparar os prazeres de um pub e os de uma brasserie, entretanto, é não apenas impossível como desnecessária. Paris é a mulher linda, inacreditável, sedutora, cortesã, femme fatale que promete prazeres indescritíveis. Às vezes, eu diria, ela exagera um pouco na maquiagem, e põe um vestido meio chamativo demais. Londres é sua vizinha, a menina do lado... mulher para ser amigo, namorar e casar. Ela conquista pela frase inteligente, na hora certa, e não pelo olhar lânguido.  


Algo absolutamente comum as duas cidades, tudo somado, é seu poder de sedução e aprisionamento. É doloroso e desagradável deixar as duas cidades para trás, e voltar à vida cotididana. A parte boa é que, nessa dicotomia falsa e divertida, não é preciso negar uma cidade para gostar da outra – assim como não é preciso desgostar de cães para gostar de gatos. Londres terá sempre meu amor, mas não se incomodará com um tórrido affair com a francesinha. Quanto às pessoas-Inglaterra e pessoas-França, você não vai querer limitar seu pensamento assim, vai? 

terça-feira, 18 de outubro de 2011

Pra rir, pra rir (parte I)


Apresentar argumentos de forma fluida, nos dias de hoje, muito além de exigir uma esperada utilização competente da retórica, transformou-se em uma aventura digna de desafios ruins em reality shows. O emissor do discurso precisa saber desviar-se dos lugares comuns (como esta comparação que agora faço, por exemplo), escolher o caminho menos acidentado até a ideia-destino que quer comunicar, e, tal qual heroi de videogame, evitar ser atingido pelos barris ou mísseis cheios de máximas e falácias simplificadoras.

Uma dessas genialidades dá conta de que “gosto não se discute”. De fato, cada um gosta do que bem quer, e já ouvi rumores de que há pessoas que gostam até mesmo de mim. Mas essa frase embaçada esconde a preguiça ou a ignorância do fato de que existe, sim, todo um acumulado de discussões e teorias desenvolvidos ao longo de milênios, que busca refletir sobre a natureza da percepção humana, algo caro e inerente à experiência artística. Essa belezura chama-se “estética”, e, fique tranquilo, não pedirá a você para altere seu afeto pelo seu artista favorito.

A hiperrelativização de todo e qualquer conceito e abordagem, se por um lado ajudou a flexibilizar ranços arraigados de Academia branca e eurocêntrica, por outro proveu toda e qualquer discussão de uma porta dos fundos, ou de um alçapão, extremamente fáceis de ser encontrados. Na dúvida, é só soltar um “ah, mas isso depende...”, e está esvaziada qualquer possibilidade de consenso construído ou de embate construtivo.

Outro grande instrumento do terror é a acusação automática de preconceito, dirigida a qualquer afirmativa geral sobre uma determinada coletividade. É claro que ressalvas baseadas em questões raciais, por exemplo, devem ser rechaçadas como hediondas, e também é claro que eu não gosto de ouvir que “todo brasileiro” tem tal ou qual característica inevitável. Entretanto, o preconceito contra o pós-conceito limita desnecessariamente muitas conversas.

Digamos que, APÓS viver em um determinado país, ou conhecer muitos de seus nacionais, alguém sinta-se à vontade para descrever traços de comportamento ou tendências de personalidade. Embora necessariamente limitador, esse tipo de comentário não delimita uma realidade imutável. Contanto que o exercício não signifique a opção por antolhos às exceções, meandros e zonas cinzentas que possam eventualmente descrever um povo, suas considerações devem ser bem-vindas. Sem algum uso de generalizações, não haveria guias turísticos ou livros didáticos e paradidáticos. Talvez arrisque dizer que não houvesse qualquer frase, letra ou fonema. Bibliotecários de outrora e do futuro, e programadores do presente, orai por mim.

Na prática da diplomacia, cada discurso, declaração oficial, nota à imprensa, cada versão final de comunicado ou tratado, e até telegramas diários (geralmente em menor grau), são estudados e revisados por vários pares de olhos, e esculpidos de forma que expressem o que foi acordado com o grau de precisão (ou imprecisão calculada) desejado (ou possível, dependendo do caso).

Ainda bem que essa exigência não é onipresente, e eu posso evocar um Janus Stark para escapulir dos ambientes acadêmicos, profissionais, e diplomáticos… um pequeno Dickens amador, para permitir a elaboração de desaforismos categóricos, com algum prazer estético, mas sem o compromisso cirúrgico das premissas e das conclusões… um Mr.Hyde para desferir um generoso golpe de bengala nos foucaults e nos javerts dos textos alheios.

E, com isso, sinto-me um pouco mais à vontade para relembrar uma das mais úteis divisões já feitas pela sabedoria humana, que separa os seres em pessoas-cachorro e as pessoas-gato. Diz-se que as pessoas-cachorro estariam mais associadas aos dias ensolarados, à forte interação com a família, à gargalhada franca e aberta. As pessoas-gato gostam da noite, cultuam seus momentos de maior introspecção e são dados a meios sorrisos. Os caninófilos são pessoas transparentes e mais conservadoras, enquantos os pró-felinos, mesmo que também de confiança, trazem sempre uma certa aura de mistério, uma impressão de algo mais, e são dados a maiores vanguardas. Superman e Batman.

Pois existem, em verdade vos digo, pessoas-Inglaterra e pessoas-França (e vou deixar a versão iracema “pessoas-Rio” e “pessoas-Sampa” de lado, para evitar suscetibilidades geográficas mais próximas e, portanto, mais intensas). Conhecida, finalmente, a capital francesa, reuni elementos para uma seríssima reflexão.


(continua)