quinta-feira, 10 de novembro de 2011

Budismo pós-moderno


Independente da opção religiosa ou agnóstica, logo vamos percebendo que a vida nos meios diplomáticos é um curso intensivo de budismo forçado, com suas nobres verdades envolvendo o sofrimento, e a necessidade de desapego e ausência do self sendo ensinadas cotidianamente.

É especialmente comum na vida de uma Embaixada que tenhamos de nos distanciar das pessoas que adentram nossas vidas. Talvez mais do que em qualquer outro ambiente profissional, a impermanência é a regra. Quando chegamos a um determinado Posto, sabemos que o tempo de convívio com a cidade e com os colegas é limitado. Da mesma forma, todos os diplomatas – brasileiros e estrangeiros com quem entramos em contato –, oficiais e assistentes de chancelaria estão apenas de passagem. Some-se a isso a alta rotatividade dos contratados locais – que acabam encontrando melhores opções, em virtude do baixo salário pago pelo Governo brasileiro – e temos uma festa de despedida quase constante.

Quando um dos profissionais com quem trabalhamos deixa a Embaixada, há um momento de reacomodação. Às vezes, ficamos tristes, por se tratar de amigos especialmente queridos. Em ocasiões mais raras, celebramos de forma discreta o fato de enfim termos nos livrado de um incômodo. Invariavelmente, seguimos em frente, procuramos receber o substituto com carinho e didática, e torcemos para que a nova relação de trabalho seja de competência e amizade. A nova realidade combinará os padrões exigidos pelo Ministério e pelas chefias com a forma de ser e agir do recém-chegado.

Em geral, tudo se passa de forma relativamente plácida. Os anciões do templo diplomático recebem seus aprendizes, e os guiam pelos caminhos (do meio) iniciais da jornada, até que aprendam a fazer as perguntas corretas e elaborar as respostas cheias de precisão e enigma de – digamos – um serviço consular.


Há um momento, entretanto, que gera compreensível ansiedade e pode atrapalhar, ainda que por alguns momentos, um caminho mais sereno para o nirvana: a mudança de Embaixador. Quando um novo titular assume, o centro nervoso – ou, quiçá, calmo – definidor do espírito de nossas rotinas será alterado. Por mais que certas práticas diárias já estejam estabelecidas e sedimentadas, haverá um novo olhar sobre o samsara local. Esse processo – embora não seja necessariamente ruim e quase sempre enriqueça nossas experiências – tende a ser, como toda mudança, dolorido e gerar algum grau de resistência.

Este é o primeiro Embaixador de quem tive oportunidade de testemunhar a partida. Tendo sido meu primeiro chefe no exterior, seu lugar especial nas memórias foi consquistado. Desde antes da minha chegada, ainda durante o período em que eu sondava as possibilidades de destino para a remoção, a confiança e a hospitalidade por ele dispensadas foram marcas do convívio.

Aproveitando a liberdade que ele sempre ofereceu, costumo brincar dizendo que ele nos mima demais, e que será difícil encontrar uma chefia bacana desse jeito – o que é uma injustiça declarada com o sábio-mór que chega, e ainda não teve chance de nos iluminar. Elogiar quem sai, neste caso, não se trata da praxe diplomática dos discursos de despedida laudatórios, e muito menos de adulação vazia – até porque, os momentos de nossas carreiras provavelmente nos impedirão de nos reecontrar profissionalmente no futuro. É o reconhecimento do aprendizado recebido.


Sabedoria das sabedorias, de cada um, chefes ou subordinados – e amigos, conhecidos, transeuntes, colegas de cela -, devemos procurar aprender, e posteriormente replicar, os melhores exemplos. A parcimônia, a aversão ao excesso de formalidade e o balanço sutil entre a ação e a não-ação são apenas alguns dos koans que espero levar comigo. E, quem sabe, um dia, alguém perca algumas linhas comentando minha partida.