sábado, 21 de agosto de 2010

Eterno

 Todos os dias, quando atravesso duas das cinco ruas que se encontram em Viiskulma, para ir pegar o bonde para o trabalho, sinto-me um pouco alienígena. A farda diplomática clássica – terno sóbrio,  gravata discreta -, absolutamente inadequada para o clima dos trópicos, também parece fora de lugar em um país em que a informalidade das vestimentas é o padrão.

Não bastassem as feições de terrorista afegão, que me identificam automaticamente como estrangeiro, em meio aos escandinavos cabelos brancos, o uso do terno atrai a atenção de quem passa. E não se trata do olhar feminino de interesse – “nossa, como ele está elegante” ou o “adoro homem de terno” da falsa mitologia. É mais um ar de estranhamento, de distância. Quando decido utilizar colete por baixo do terno, a máquina do tempo apronta-se de uma vez.  

Hoje, ao menos, ocorreu uma semi-exceção. Ao entrar no bonde, sentei-me de frente a um senhor bem idoso, vestido irrepreensivelmente, desses que a gente não vê mais. Seu terno era preto, a gravata era de um cinza médio, cor de filme antigo, e os sapatos lustrados com zelo.  Eu vestia um terno grafite, com gravata em arlequins de azul marinho e prata. Mais moderno no corte e nas cores, mas tão estranho àquele ambiente quanto ele.

Como a chuva marcava o início do outono, ambos portávamos guarda-chuvas – não esses retráteis da modernidade, mas os mais antigos, longos, com cabo de madeira, e capazes de oferecer proteção com competência para seus donos – e, quem sabe, para uma donzela desatenta ao clima.

Sua indumentária era completada por um Fedora da mesma cor do terno, o que só me encheu de inveja positiva. É um dos meus mantras repetir que o mundo era um lugar melhor quando os homens usavam chapeu. Em Brasília, além de aumentar a sensação de calor, o uso do chapeu é quase motivo de chacota. Eu ando querendo comprar um chapeu-coco, e quem sabe esse encontro fortuito seja decisivo.

Entre nossas diferenças, além da idade, estava o fato de que ele tremia um pouco, de quando em quando, já com seus sintomas de velhice estabelecidos. Além disso, seus olhos pareciam bem mais vivos que os meus, talvez pelo acúmulo dos anos ter causado a ele menos cansaço. Como cavalheiros de outrora, trocamos olhares de cumprimento – e, por que não, de cumplicidade - na minha descida do bonde.

Éramos dois senhores bem vestidos. Eu, por obrigação profissional, e ele, especulo, por estar se dirigindo a algum local ou evento importante – embora, em plena quarta-feira pela manhã, batizados e casamentos estivessem excluídos. Quem sabe ele não estivesse indo visitar o túmulo de sua esposa, que, em outros tempos, assim como a minha faz hoje, o ajudava corrigir um último amarrotado no paletó antes de sair de casa, e tornar o sujeito ainda mais alinhado. Ou, talvez, os de outros amigos, que também usavam ternos pelos bondes da vida, menos deslocados do mundo ao seu redor.


terça-feira, 17 de agosto de 2010

Heavy Metal 3D

Antes mesmo de vir morar na Finlândia, eu já tinha noção de que se tratava de um país peculiar do ponto de vista musical. E eu não me refiro à música tradicional - sami - ou ao nacionalismo de Jean Sibelius, o Carlos Gomes deles. Eu estou falando é do bom e velho rock: tanto colegas esgrimistas quanto o pessoal da lista Gótico-DF já tinham me chamado a atenção para o fato de que, na Finlândia, a chamada “cena metal” é muito forte. 

Ainda no Brasil, tive a curiosidade de entrar no site da Stockmann, a grande loja de departamentos de Helsinque, e dar uma olhada na lista dos CDs mais vendidos. Em primeiro lugar estava uma cantora inglesa, a Sade, e, logo em segundo, vinha a banda finlandesa HIM - uma espécie de Roupa Nova deprê do metal, que eu já conhecia e gostava há vários anos. Naquele momento eu já tive uma noção de como seriam as coisas: quando é que eu ia ver uma banda de metal encabeçando as paradas das Lojas Americanas?  

Em um país de musicas engraçadinhas, Ivetes, Cláudias e, quando muito, Marisas, quem gosta de rock virou órfão há umas duas décadas. Eu tenho uma teoria seríssima de que os produtores de Rio e SP, membros da SS cultural brasileira, ao verem que a maioria das bandas boas de rock eram de Brasília, trataram de sabotar o ritmo ao longo dos 1990s. E eu não vou nem entrar no mérito da década de zero, para não ficar deprimido. 

Ao chegar por aqui, só pude reforçar a boa impressão. O tiozinho do ônibus da Ikea, do alto de seus 50 e tantos anos, ouve rock enquanto dirige; há bares de rock espalhados pela cidade - dentre os quais o PRKL, o Stage Bar e o On the Rocks; o Dante's Highlight tem um palco para shows de “bandinhas” maior do que qualquer outro que Brasília já tenha visto; e, para coroar a diversão, há um karaoke especializado em heavy metal e hard rock, chamado, apropriadamente, de heavy corner. Meus queridos amigos Zeca, Ed, Montana, Conatus e companhia ajoelhariam no chão, e chorariam dizendo “nós não mereceeeemos... ” 

Encontrar gente cabeluda, vestida de preto, cheia de brincos e tatuagens, aqui em Helsinque, não é coisa de nicho, de subsolo de Conic. E pode ter certeza que, ao entrar em qualquer loja que venda CDs e DVDs, haverá uma sessão enoooorme especializada em rock.  

Aliás, outro dia eu estava lendo em um jornal daqui que na Finlândia tudo vira rock:  se misturar amor com rock, vira o love metal do HIM; ópera com rock vira o Nightwish; música erudita com rock vira o Apocalyptica, e por aí vai. Até na hora de ganhar o  Eurovision - festival anual e super concorrido aqui na Europa - a Finlândia emplaca uma banda de rock, o Lordi. E, para os fãs de Guns n'Roses, recomendo uma procura por Hanoi Rocks, no You Tube, para vocês terem noção de que originalidade é uma coisa bem relativa. 

Interessado em assistir algumas dessas bandas de perto, eu tentei, recentemente,  ir ao Sonisphere, festival realizado em Pori, cidade na costa oeste da Finlândia. Infelizmente, embora houvesse ingressos disponíveis, não consegui, nem com a ajuda do caríssimo Lucas, encontrar um hotel por lá. E, para ficar na camping area, vocês vão me desculpar, mas já não tenho o humor necessário. É bom que se diga que eu escapei de boa... Exatamente no final de semana em que ocorreu o festival, uma tempestade vinda direto do inferno despejou-se sobre a Finlândia: tamanho foi o vento que, lá em Pori, partes dos palcos e pedaços das grades se soltaram e atingiram a multidão de headbangers, ferindo 40 pessoas e alegrando outros tantos, em um autêntico festival de heavy metal 3D !
  

domingo, 8 de agosto de 2010

Pensão em ação

Quando estávamos procurando apartamento para alugar em Helsinque, mantínhamos em mente a necessidade de encontrar um lugar que oferecesse espaço confortável para a acomodação dos hóspedes. O valor do auxílio pago pelo Itamaraty comportaria um local grande o suficiente, e, além disso, Flávia e eu gostamos de ter pessoas queridas por perto, e de recebê-los.

Como viemos morar na Europa, sabíamos que, cedo ou tarde, teríamos boas visitas, entre amigos e parentes. Ademais, depois de se tornar diplomata, você naturalmente passa a ter colegas em vários pontos do mundo, então fica bem mais fácil e comum esse intercâmbio de sofás e camas de hóspedes.

O pioneiro na ocupação das instalações do Pentágono (apelido de nosso pequeno esconderijo) foi o primo Pedro. As relações de parentesco em Minas Gerais merecem um pós-doutorado em antropologia, mas nesse caso era uma relação simples de segundo grau: Pedro é filho de uma prima da minha mãe. E, muito mais importante que isso, foi um daqueles casos de amizade fácil e instantânea: embora só tenhamos nos conhecido há poucos meses, e embora tenhamos uma diferença de idade que ultrapassa uma década, rapidamente nos enturmamos e viramos parceiros de longa data, ainda que de poucas datas.



Pedro chegou no dia 30 de junho e, logo em seguida, no dia 02 de julho, Carol e sua mãe, Mira, chegaram a tempo de ver o Brasil perder da Holanda na Copa do Mundo, com direito a previsão precisa da Maga Flávia. Ainda assim, foi um fim de semana divertido, e espero que todos tenham gostado da acolhida. Durante a estada de Mira e Carol, finalmente fizemos um sightseeing de Helsinki – só que não de ônibus, e sim de barco, para aproveitar o bom clima do verão e ter uma visão da península onde a capital finlandesa está situada, bem como de algumas das ilhas em torno dela, com destaque para o grupo de ilhas onde está situada a Fortaleza de Suomelinna. Quando formos de verdade explorá-la, eu conto mais detalhes.

 
Os próximos a usufruir dos bons préstimos de Flávia foram Pedro (outro pedro!) e Miriam, colegas diplomatas que passaram por aqui agora no início de agosto. Ela vinda de Oslo, ele de Bratislava. Neste caso, eles não ficaram hospedados aqui em casa (porque não quiseram, hein!), mas nos visitaram para saborear uma das especialidades da esposa, um quiche delicioso. Aproveitamos para tomar uma cerveja juntos no Perkele, barzinho de rock indicado pelo Lucas, e para falar bem e mal da vida.

Por falar em Lucas, merece menção especial o apoio que ele tem dado a praticamente todas as nossas iniciativas aqui em terras Suomi. Lucas é brasileiro, mora por aqui há uns quatro anos e trabalha na nossa Embaixada. E, sem ele, certamente a adaptação estaria sendo bem mais complicada – viva viva, salva de palmas, aquelas coisas todas, e muito obrigado. E pára de me chamar de Chefe.


 Na mesma semana – ou seja, esta durante a qual vos escrevo -, o Guilarducci Inn recebeu Andre e Bruno, mais dois colegas diplomatas, em tour pelos lados menos CVC da Europa. Quem quiser acompanhar a aventura dos dois, procure “Ondéquistão” no Google. Mais boas companhias, mais diversão. O melhor disso tudo é que na diplomacia existe um princípio básico chamado “reciprocidade”... portanto, Pedro, Miriam, Andre, Bruno, e etc, podem preparar os colchonetes...

Assim que terminar de escrever, lá vou eu ajudar a Flávia a preparar a casa para as próximas levas de visita. Esta semana chegam Renato e Sarah, e, na semana seguinte, meus sogros pousam por aqui para verificarem de pertinho que história é essa de levar a filha deles pro outro lado do oceano.

Na esfera das intenções declaradas, além da minha mãe, tenho o Professor Joanisval, Andre(a Doria) e esposa, e quem mais? As reservas estão abertas... E ganha bônus quem se aventurar a vir para um Natal branco, igualzinho a dos filmes, e bem congelado, conosco...

domingo, 1 de agosto de 2010

[Memorabilia] Missão cumprida, Tia Zizi!

Para os que não sabem, o “Ducci” que faz parte do endereço do blog, é uma corruptela de Guilarducci, meu sobrenome de família, e da Flávia por casamento. Como “Guilarducci” virou “Ducci” na minha adolescência é um caso para ser contato uma outra hora, e envolve um russo doido, uma violonista curitibana, um vendedor de sorvete, bandas de hard rock californianas e outros bichos do monstro-ário.

Meu tio Carlos Alberto, após anos trabalhando na Vale, aposentou-se e passou a se dedicar intensamente a dois de seus principais hobbies: fotografia e pesquisa sobre a genealogia da família. Dotado de uma inteligência invejável e um fôlego que eu já não tenho, o Tio Betinho tem levantado uma quantidade incomparável de dados di noi. Compilou informações muito interessantes, que já recuam até 1532, e que um dia vai se tornar livro e website. Espero que ele não se importe que eu dê algumas prévias por aqui.

O estudo mostra, por exemplo, que a grafia correta do nome é Ghilarducci. O nome derivaria da forma medieval “Gherardo”, uma latinização do germânico gar/ger (lança) e hard (forte). Não estaria descartada a forma Willhard (will + hard), que siginificaria uma família com uma grande força de vontade. O “ucci” seria uma terminação bastante comum na Toscana (ex: Bertolucci, cineasta e primo), região onde fica Cappanori, na Província de Lucca, origem geográfica da famiglia, e siginificaria “descentende de”. Pensando bem, vai ver é por isso que eu gosto do Liverpool, já que o capitão do time, Steven Gerrard, pode bem ser meu parente torto. Se fosse mineiro, era primo, com certeza.

Meu trisavô, Giovani Alessandro Ghilarducci, aportou no Rio de Janeiro em 18 de novembro de 1878, no Vapor Henri IV. Devido a misspelling nesse meu letrado Brasil imperial, ele virou Alexandre Guilarducci, grafia que herdei. Outros, Brasil afora, ficaram com “Guilarduce”, “Guilarduci” ou “Guilharducci”, mas somos todos, in the end, da mesma família.

Tudo isso para contar que, logo que chegamos a Helsinque, fomos convidados para jantar na Residência do Embaixador Armando Cardoso, no dia 9 de abril. Seria uma espécie de recepção de boas vindas ao novo Secretário e sua esposa. Algo mais íntimo: apenas o Embaixador e a Embaixatriz, a Ministra Mônica e o casal que, então, se acostumava com o frio.

Primeiro veio meu problema: eu nem gosto de, nem posso comer frutos do mar. Para que não houvesse maiores desconfortos, tivemos a ideia de, “sem querer”, deixar a Karoliina, secretária do Embaixador, ter acesso a esse pequeno detalhe. A seguir, veio do drama da roupa... jantar com um Embaixador, numa sexta à noite... qual o nível de formalidade?  Deveria usar terno? Para esse drama, o próprio Embaixador incumbiu-se de entrar na minha sala, na sexta pela manhã, e dizer: “Hoje lá em casa é informal, hein?!”.

Mais relaxado, me enfiei numa calça de veludo cotelê preta, com uma camisa social de mangas curtas branca e um suéter verde escuro, só para proteger as costas do frio. A Flávia optou por calças jeans, botas pretas de salto alto, e um suéter preto, de gola alta.Como nasceu para essas coisas muito mais do que eu, a Flávia teve a corretíssima ideia de comprar uma orquídea, para levar de lembrança para a Embaixatriz Dora.

A Residência se localiza nos últimos andares do próprio prédio da Embaixada, onde chegamos pontualmente. Entramos no elevador – pela primeira vez, já que nos outros dias bastava um lance de escada para que eu chegasse ao andar em que se localiza minha sala –, apertamos o botão correspondente ao terceiro andar e... nada. Apertamos novamente – nessa divertida mania humana de achar que insistência com a máquina adianta -, e obviamente nada de novo aconteceu. Para não atrasarmos, subimos de escada, e fomos recebidos gentilmente, e sem maiores cerimônias, pelo casal de anfitriões.

Em um misto de alívio e riso contido, percebemos que minha escolha de roupas tinha sido exatamente a mesma do Embaixador Armando, apenas com uma outra cor de suéter. A Ministra Mônica chegou ao mesmo tempo que nós, e a conversa seguiu tranquila. A única diferença identificável entre aquele encontro e uma reunião entre amigos era a presença de um garçom nos servindo à francesa – o indefectível Gupta, mordomo da Residência.

Tudo começou com uma champagne (uísque para o Embaixador), para celebrar a nossa chegada. Antes do jantar propriamente dito, risoles e empadas, todos muito gostosos. A Embaixatriz contou que já nos vira pela cidade, no cinema Maxim – que escolhemos para nosso primeiro filme, “A Single Man”, ainda no domingo de Páscoa [n.a.como contamos no post de 4 de abril]. Disse ela que viu aquele casal jovem, em um fim de semana de feriado, falando português, e deduziu automaticamente que seria o novo diplomata brasileiro com a esposa.

Após algum tempo de uma conversa simpática sem artificialismos, fomos convidados a nos dirigir para a sala de jantar. Como entrada, foi servida pera recheada com blue cheese, acompanhada de salada de alface americana e tomates picados. Como todos sabem, menos a Carol e o Goes, qualquer coisa com queijo é boa, e, naquela ocasião, a leveza do preparo e do ambiente fez tudo parecer mais especial ainda.

De repente, após ouvir os elogios à escolha do prato de entrada, a Embaixatriz comenta: “Ah, logo teremos um delicioso salmão...”. Antes que terminassem os meus três segundos de choque, ela começou a rir, apontou a brincadeira e agradeceu pelo aviso sobre minhas limitações gastronômicas. Sorri, meio sem graça, meio satisfeito.

Como prato principal, foi servido um confit de canard, acompanhado de arroz branco e batatas fritas em rodelas. Para quem não sabe o que diabo é isso, como era meu caso, trata-se de um prato típico da Gasconha, feito com a perna de um pato, cozida em sua própria gordura durante horas a fio. A explicação é cortesia do Dicionário Flávia de gastronomia e culinária.


Era a hora de um novo brinde, e, naquele momento, lembrei-me da missão que me foi dada por uma tia, a Tia Zizi: “Quando você estiver jantando com o Embaixador, na Finlândia, se preparando para representar o Brasil no exterior, lembre-se do seu Trisavô Alexandre, vindo para o Brasil, sem dinheiro e sem rumo certo. Mais um século depois, um descendente dele está de volta à Europa, em condições totalmente diferentes da que ele veio”.

Aquele brinde foi para ele, e para minha Tia Zizi, e para meu Tio Carlos Alberto, e para meu Tio Zé Carlos, e para minha mãe, e para e para todos os Guilarducci.

Toda a famiglia segurou aquela taça comigo, e faz parte desta conquista.

Ah, sim. Na descida, descobrimos que, nos elevadores da Embaixada, não basta apertar o número do andar. É preciso pressionar em seguida um “close door”, que estava bem na nossa frente o tempo todo.

Ser jacú é dose.


Post Scriptum
Dedicado aos parentes e amigos, presentes e ausentes. À minha mãe, que faz aniversário hoje (1o de agosto); à Marcinha Negreiros, que não é família de sangue, mas é mais do que isso (nossos pensamentos com você, moça!); e a meus colegas da Turma Celso Amorim/2007-2009, que completam 3 anos de sobrevivência na diplomacia.
Este texto inaugura a sessão “Memorabilia”, do blog, que contará sobre eventos e sentimentos que já ocorreram há algum tempo por aqui, e que, por um motivo ou por outro, acabaram não sendo divididos com vocês.