Ao
adentrar a antessala da Escola de Música de Eira pela última vez, a sensação foi
de estranhamento. Ao contrário do ambiente semanal, que o recebia com a movimentação
dos instrumentos retirados ou recolocados nas sacolas, e dos casacos, gorros e cachecois
sendo vestidos ou despidos – algo que, para padrões finlandeses, poderia quase
ser chamado de balbúrdia –, o silêncio e a solidão reinavam na sala nua. Apenas
seu professor de piano o saudava com um discreto sorriso, do alto de seus quase
dois metros de altura:
–Moi !
No
estúdio de piano da escola, a impressão foi igualmente sombria. Em um ambiente
em que normalmente poderiam ser encontrados dois pianos e seus bancos, algumas
cadeiras para uma eventual audiência, estantes com songbooks e partituras
avulsas, uma planta no canto e outros sinais de vida, jazia, exclusivo, um
meia-calda Steinway, soberbo e
silencioso, aguardando para ser violado uma derradeira vez por mãos inábeis.
– A escola já está se preparando para uma
grande reforma no verão, por isso já retiramos quase tudo. Depois da sua lição
de hoje, acabou.
A
frase não trazia qualquer tom dramático, mas soou mais dolorida do que o
desejado. Aquela aula marcaria o fim de
um ciclo, que se confundia com os últimos meses em que viveria no país.
Quando
ele se mudara para a Finlândia, três anos antes, alugara um apartamento no qual
repousava, no canto da enorme sala de jantar, um antigo piano, sem marca
identificável, com a madeira marcada e meio desafinado. Não obstante, a
perspectiva de coabitar com o instrumento despertou um velho desejo nunca
realizado de aprender a tocar pelo menos algumas músicas simples, e, quem sabe,
ousar compor uma ou duas baladinhas. Tendia a gostar de bandas de rock nas quais houvesse uma preocupação
especial com os arranjos dos teclados. Guitarristas, guitar heroes, eram muito óbvios... Assim, sem prejuízo de
emocionar-se com os cortes agudos de um solo de guitarra, ele preferia a
densidade oferecida por um Magne Furuholmen ou mesmo por um Luiz Schiavon.
–E então, o que vamos tocar hoje? – a indagação
o despertou do transe.
A
pergunta era marca registrada do professor. Em todas as aulas, o mesmo mantra registrava
um momento de boas-vindas e relativo constrangimento – já que raras eram as
vezes em que, de fato, alguma das peças havia sido estudada e praticada o
suficiente a ponto de ser executada com um mínimo de competência.
O tom
da pergunta não era, e jamais havia sido, o de cobrança ou insistência. J...
sabia que o aluno era diplomata, com horários irregulares e compromissos
seríssimos de trabalho. Ademais, desde a primeira lição o aprendiz deixara
claro ao mestre a intenção de ter, naqueles 45 minutos semanais, um passatempo
leve, eivado de ansiedades. ‘Eu quero
tocar Nick Cave, não Liszt’ – dissera com o sorriso onipresente.
– Na verdade, eu pensei que poderíamos listar alguns exercícios para eu fazer sozinho, até que eu eventualmente volte a
ter aulas em outro país...
Embora
vacilante, a sugestão fazia sentido:
não havia tempo para iniciarem o estudo de uma nova peça, e, como sempre, as
músicas anteriores estavam todas pouco estudadas. Seria melhor investir em
ferramentas a serem utilizadas no futuro do que se concentrar em um esforço
específico.
J....
concordou, com um grunhido identificável como afirmativo apenas por aqueles que
já conviveram com finlandeses. Sua
aparência poderia enganar em princípio: além da altura fora da média, J...
mantinha a cabeça sempre raspada, ostentava tatuagens diversas pelos braços e
pescoço, e um cavanhaque cujo comprimento superava a um palmo. Bastava,
entretanto, conhece-lo um pouco mais, para descobrir que, longe de ser o hard rocker ou o metaleiro que o visual
pudesse sugerir, tratava-se de uma pessoa doce, amante do jazz, que deslizava suas enormes mãos pelas oitavas do piano com
uma suavidade inesperada.
Quanto
ao aprendiz, ele já era capaz de tocar com alguma desenvoltura melodias ou
acordes com a mão direita OU marcar a linha do baixo com a mão esquerda.
Coordenar as duas mãos, e, como pretendido, cantar as letras ao mesmo tempo,
parecia ainda uma competência muito distante. Muito pouco, pensava ele, após
tanto tempo de curso.
– Olha, eu queria pedir desculpas... eu nunca
pratiquei como deveria. E nem posso por a culpa no serviço não... todo mundo
tem 10 ou 15 minutos por dia para se dedicar ao que gosta... Devo ser seu pior
aluno...
J...
sorriu tranquilo, transmitindo uma intimidade pouco típica.
– Na verdade, é nas suas aulas que eu mais me
divirto – surpreendeu – Meus outros
alunos vêm, entram sérios e calados, tocam sem cometer erros, recebem
instruções e vão embora. Muitos deles estão aqui por vontade dos pais, ou
aprendem música por obrigação. Do seu jeito mais relaxado, mais imperfeito, as
aulas ficam sempre mais interessantes. Fora o fato que você sempre traz
histórias interessantes da Embaixada... – jamais um finlandês fora tão
verborrágico.
Estimulado
pelas palavras carinhosas, o aprendiz abriu sua pasta de partituras, e começou
a folheá-la, relembrando as aulas. Seu repertório seria até interessante,
composto, entre outros, por minuetos de Krieger e Purcell, uma canção óbvia
qualquer dos Beatles e o tema de James Bond. Seria, caso ele fosse capaz de
executar de fato qualquer uma dessas composições.
– Mas veja o quanto você aprendeu... –
J... adivinhava seu pensamento – Hoje
você tem condições para tocar qualquer uma dessas músicas em sua pasta. Basta
para isso perseverar. E você até compôs sua própria obra-prima...
Era
mesmo verdade. Um dos exercícios realizados em aula dera origem a uma canção
completa, com introdução, corpo, refrão, solo, fuga e retomada do tema ao
final. Tudo isso havia sido composto com o auxílio do computador, em grande
parte sem a noção racional do que estava sendo feito, confiando mais no ouvido
do que no cérebro. A ironia final era a incapacidade do próprio criador de
interpretar sua criação. De toda forma, tratava-se de uma herança concreta, uma
testemunha de sua evolução musical.
Talvez
essa tenha sido uma das estratégias de ensino... Em vez de sobrecarregar o
aprendiz com aspectos teóricos de harmonia, por exemplo, J... sempre propiciara
momentos de prazer junto do piano. Houveram sido muitos os fins de tarde em que
a aproximação do horário de ir para a aula de piano era acompanhada de um certo
desânimo, gerado pela consciência da indisciplina de estudos. O retorno das
aulas era invariavelmente acompanhado por um sorriso e pela certeza de que
aqueles breves momentos figuravam entre os favoritos na agenda da semana.
– Vamos fazer uma última atividade. Escolha quatro
acordes quaisquer. – propôs o instrutor.
O
aprendiz sorriu por dentro. Ele havia inventado uma piada interna para essa
instrução, bastante comum em suas aulas, e que invariavelmente levava, momentos
depois, à execução de algum exercício utilizando os acordes escolhidos. Já há
algum tempo, ele escolhia sempre a mesma sequência: ré menor, fá, si bemol e lá
menor, cujas cifras correspondentes – Dm, F, Bb e Am –, em sua lógica interna e
muito particular, faziam referência às suas iniciais (mas com a sonoridade
melancólica de um acorde menor), seguida das de sua esposa, de sua nota natural
de ataque de voz e... bem, de um acorde que soava mais ou menos adequado após
os outros três. Se J... havia percebido
essa pequena traquinagem, ele não sabia dizer. O fato é que jamais havia
comentado qualquer coisa sobre o assunto. Naquela última aula, a sequência de
acordes proposta seguiu o padrão.
– Muito bem. Agora toque essa sequência de acordes com
sua mão direita, e, ao mesmo tempo, acompanhe com o baixo correspondente com
sua mão esquerda, dessa forma. – e demonstrou
brevemente.
As
mãos de J... eram enormes, proporcionais à sua altura. Cada uma delas, com os
longos dedos bem abertos e esticados, eram capazes de alcançar cerca de duas
oitavas do piano – quatorze das teclas brancas, para os leigos. Isso não as
impedia de possuírem uma leveza e graciosidade permanente ao deslizar de nota
para nota.
O exercício,
em si, não tinha nada de novidade. Embora envolvesse o uso das duas mãos ao
mesmo tempo, a simples marcação da nota tônica – aquela que dá o nome ao acorde
– com a mão esquerda não seria problemático. Já a mudança de um acorde para o
outro ainda estava longe de dominada, o que acabava por gerar perda de ritmo e,
com certa constância, uma espécie de “tropeço” de um dedo no outro. Quando
assistia a vídeos de suas bandas favoritas, o aprendiz reparava que os
tecladistas pareciam mover muito menos suas mãos ao tocar as músicas – o que
significava que ou ele não estava entendendo nada, ou, quem sabe, havia um
complô mundial de bandas usando playback
nas gravações de seus shows.
– Isso acontece porque você ainda não dominou todas as
inversões possíveis dos acordes. – explicou o mestre – Agora toque a mesma sequência, mas usando diferentes
inversões.
Um
acorde básico usa três notas. No caso do ré menor, que dava início à sequência
adotada pelo aprendiz, era preciso tocar as notas ré, fá sustenido e lá. Mas o
mesmo acorde pode ser tocado invertendo as notas, lá-ré-fá# ou fá#-ré-lá. Era
possível operar inversões semelhantes em todos os outros acordes da sequência
escolhida pelo aprendiz, ou qualquer outro.
Ao
colocar em prática a instrução recebida, em princípio com certa dificuldade,
mas depois com mais desenvoltura, o aprendiz começou a entender a ideia
proposta. Como alguns acordes possuem notas comuns em sua formação – o lá, por exemplo, faz parte de três
dos quatro acordes daquela sequência – pode-se
mover um número menor de dedos, bastando manter a posição na tecla, ou teclas,
das notas a serem repetidas. Dito de uma outra forma, as inversões acabam
funcionando como atalhos entre um acorde e outro. Em menos de dez minutos de
treino, a agilidade naquela operação já parecia bem maior.
– Quinze minutos, todos os dias. Não é preciso mais do
que isso para você aperfeiçoar sua técnica.
– É, eu bem sei.
A despedida
foi alegre, aproveitando as notinhas de esperança de dias mais habilidosos,
embora a perspectiva de jamais voltar a ver uma pessoa com quem se conviveu por
três anos seguidos fosse dolorida. A internet, por meio de suas redes sociais,
ofereceria ao menos algum potencial difuso para que o contato não fosse
inteiramente perdido.
– Vá me visitar no próximo Posto! – o convite surpreendeu J... de forma
aparentemente positiva.
Talvez
por descaso, talvez por imaturidade, preguiça ou cansaço, ele não havia
dominado todas as inversões possíveis na Finlândia. Após três anos, ainda era
grande a dificuldade em adaptar-se a certos padrões de comportamento, ou
encontrar a nota certa que harmonizasse seu jeito de ser com a partitura local,
que tantas vezes soara algo atonal.
No
próximo Posto ele iria dedicar-se mais. Desta vez, ele sentia que não
aproveitara a oportunidade em toda sua plenitude. Um pouco, todos os dias.
Reinícios, como os que a carreira diplomática oferecia a cada três ou quatro
anos, em novos países, contextos de trabalho e experiências cotidianas, eram
momentos mais do que propícios para colocar em prática novas posturas, novas
rotinas, novos olhares.
A
teoria musical, no capítulo sobre harmonia, mostra que é possível incluir
muitas notas em um acorde, para criar tensões, dar novas cores e encadeá-lo de
forma mais natural ao longo da canção. Mas isso era um extra, algo além, a ser
aprendido com o tempo. Por hora, ele preferia voltar para casa, assoviando o
refrão da música que ele mesmo compusera.