terça-feira, 21 de dezembro de 2010

O frio que veio para o casal



A pergunta mais frequente que eu e Flávia ouvimos desde que chegamos aqui, quando conversamos com amigos e familiares no Brasil, é “e o frio?”. É como se o grande desafio a ser vencido aqui fosse a diferença climática, e corrêssemos o risco de um dia acabarmos congelados tal qual Capitão América, esperando que os Vingadores nos descobrissem anos depois.

Confesso que, antes de vir para cá, antecipava com algum receio a possibilidade de viver doente, gripado, ou desanimado – preso em casa, observando impotente pela janela, enquanto toneladas de neve caíssem e eu fosse obrigado a atualizar a literatura e os filmes em DVD durante cinco meses (hei, isso nem seria tão ruim...). Essa fantasia fatalista não poderia estar mais longe da verdade.

Quando morei em Londres, nos idos de 2001, passei um semestre completamente livre de gripes, sinusites, tosses e outros sintomas candangos. Mas eram outros tempos, e o frio a que fui exposto lá não descia de zero grau. Na Escócia cheguei a sentir o que eram -2 oC ou - 3oC – o que não chega nem perto da temperatura finlandesa, quando resolve esfriar.

Nosso recorde, aqui, até o momento, foi de -20 oC. Isso, uns quarenta e cinco ou cinquenta Celsius abaixo do que estou acostumado em Brasília. E, quer saber?  A saúde está absolutamente firme, o que me prova que ou eu me dou muito mal com o calor, ou tenho alergia a minha cidade natal – o que muito me entristeceria.

Outra coisa que eu já sabia desde Londres, e que está sendo reforçada aqui: a gente se acostuma. Recordo uma cena, lá por março ou abril de 2001, em que eu estava na cantina da escola onde estudava. Embora vestisse apenas jeans-e-camiseta, sentia um calor absurdo, daqueles de transpirar. Imaginava que uma onda de calor havia se abatido sobre a Inglaterra... deveriam ser 30oC ou 35oC, no mínimo... Até que o locutor de uma rádio que tocava por lá anuciou “tempo bom em Londres, 16oC...”. Dezesseis graus haviam se tornado um “calor absurdo”...

O frio é uma variável altamente controlável, e mais administrável que o calor. Dentro de casa, a calefação permite que você fique até nu, se quiser. E com o casaco adequado, e as botas apropriadas (e luvas, e gorros, e cachecois, e ceroulas térmicas super tecnológicas), o nível de agressão a que se é submetido é mínimo.

É claro que há toda uma... burocracia gerada pelo frio. Por exemplo: em todos os locais em que vamos – restaurantes, museus, escritórios - e mesmo na nossa própria casa, o primeiro objeto que se busca – e em geral se acha – é um cabide. Entrar e sair de ambientes gera um veste-e-tira de várias camadas de roupa. Na hora de ir ao banheiro, isso pode ser um pouco... desesperador. Além disso, acaba-se por ter um sapato – ou bota – específico para caminhar nas ruas, cheias de neve, e outro para ficar no trabalho. O par fica lá, esperando você chegar, e trocar do seu battle suit para as roupas civis.

Ainda no quesito roupas, a Flávia identificou que o frio faz com que as pessoas pareçam mais elegantes. Sobretudos, botas, luvas... em tecidos e cortes mais nobres e sóbrios, fazem bem à estética. No meu caso, tive uma epifania relacionada aos patos. Quando chegamos, o prato servido no jantar oferecido pelo Embaixador foi pato, como já contamos por aqui. Agora, todos os dias, as penas de pato que recheiam minha parca sueca me mantêm quentinho. O pato é a cura de todos os males.

Outro alerta que recebemos desde antes de nos mudarmos para cá foi quanto à escuridão. Quem já teve a experiência de invernos passados na Finlândia nos dizia que o frio não era o problema, mas a falta de sol iria nos deprimir. Precisamente hoje chegamos ao dia mais escuro do ano: a alvorada se deu às 9h23, e o pôr-do-sol está previsto para às 15h13. São poucas horas de claridade, e, assim mesmo, em geral difusa pelas nuvens. A partir de amanhã, os dias voltam a crescer, lentamente.

Posso afirmar que não houve maiores alterações de ânimos por causa da falta de claridade. Senti um pouco de sono fora de hora, nos primeiros tempos, e só. De resto, o único impacto das trevas nórdicas foi o investimento, por conselho dos motoristas locais, em pequenos “reflectors” a serem pendurados nos casacos. Mas eles são bonitinhos, as pessoas aqui até fazem coleções.

A neve é um espetáculo à parte. Desde a descoberta de que o floco de neve tem de fato o formato de um asterisco, até a consciência de que neve não é necessariamente sinônimo de frio – ao contrário, em geral, quando neva, é prenúncio de que a temperatura subiu um pouco, após um tempo. E a Finlândia sabe nevar bastante (o texto é meu, e eu pessoalizo o verbo se eu quiser). As paisagens ficam lindas – claro, mais bonitas de serem aproveitadas de dentro de uma casa ou café bem quentinho – e as formações que o gelo desenha são um prazer para os olhos.

Por causa da neve, certos fenômenos sociais acabam acontecendo. Vocês não podem imaginar a quantidade de trabalhadores envolvidos em retirar o acúmulo de neve das ruas com tratores e pás, e outro dia vi dois sujeitos em cima de uma grua, varrendo o teto (!!!) dos prédios da rua ao lado.

Há, certamente, o lado... negro(?):  embaixo daquela neve fofinha e branquinha, com a qual você enche a mão e joga na esposa, esconde-se uma camada de gelo, absolutamente escorregadia. A medida que o dia vai passando, e a neve vai sendo retirada e/ou pisoteada, resta uma crosta meio marrom. Um passo descuidado e a chance de se conhecer o gosto do chão de Helsinque cresce. Para reduzir um pouco o drama das calçadas lisas, camadas de sal são jogadas sobre elas. Até agora, ainda bem, só ficamos nas patinadas, sem maiores cenas ridículas e perigosas.

E por falar em cenas esdrúxulas... A neve foi o último elemento que faltava em nossa indecisão sobre comprar um carro ou não. Até então, nós não víamos necessidade, uma vez que moramos em uma ótima localização, perto da Embaixada, e de tudo que precisamos em termos de mercados, diversões, etc. O transporte público, para o dia-a-dia, e um táxi eventual, dão conta tranquilamente das nossas necessidades. Agora, após testemunhar a luta diária dos motoristas para resgatar os veículos sonevados (a palavra não existe, mas se “soterrado” é referente a terra...). Isso sem mencionar que dirigir sobre esse tapete branco seria uma aventura absolutamente desnecessária. Tragam-me um snowmobile, talvez, e a gente conversa.

Claro que a bisneta de Tonho Funileiro, figura famosa de Frei Paulo, no interior de Sergipe, ficou feliz mesmo quando conheceu o glogg, bebida típica do inverno finlandês, e que parece MUITO com o nosso quentão de festa junina...

Em resumo, a vida por aqui não pára por causa do frio. Mas é bom lembrar que o inverno só começou oficialmente hoje... até agora era ensaio...   ;)


PS1:  Feliz Yule a todos!
PS2:  este post é dedicado ao meu colega diplomata Humberto, que adora casaquinhos.

7 comentários:

  1. Eu fico muito feliz em dias frios mas nunca passei por tantos graus a menos.

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  2. Agora, sim, isso parece a Finlândia de que sempre ouvi falar! Não aquele paraíso tropical que conheci em agosto!

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  3. Cara, aqui onde eu trabalho tem um monte de patos. Podemos fazer um negócio de exportação/importação?

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  4. Algumas contribuições complementares da vizinha de país fronteiriço:

    1. "Não existe tempo ruim; existe roupa inadequada." O primeiro e mais famoso ditado popular norueguês corrobora de maneira enfática o fato de a galera não se privar de fazer coisas em geral por causa do inverno.

    2. Mais perigoso ainda do que escorregar e levar um estabaco retumbante que te leva à lona branca é a famigerada época do degelo de fim de inverno, em março. Se a neve estiver acumulada nos telhados, o que ocorre facilmente sem essa fabulosa manutenção periódica à Homem-Aranha nos telhados, a qual ainda não vi similar em Oslo e que é de responsabilidade de cada prédio, você realmente corre risco de morte se uma bigorna de gelo cair sobre sua cabeça.

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  5. É isso aí! Primeiro vez que eu vejo um brasileiro sem essa frescura de reclamar do frio ou da depressão no inverno. Uma boa atitude. O Luciano me passou seu link e adorei seu blog. Agora, por exemplo, estou em Ribeirão Preto, num calor infernal, que você não tem como resolver, nem o ar condicionado suporta. Dá vontade de entrar na geladeira. Como eu queria estar numa nevezinha agora...

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  6. hahahhahahah, minha paixão por casaquinhos tem a ver com a observação da Flávia sobre a elegância. Só no frio posso expor meu casado de marta zibelina. ;-)

    Brasília tem seus encantos inegáveis. Mas uma coisa que sempre me perturbou foi a claridade da cidade. Como brilha! Ficava com dor de cabeça. Deixava óculos escuros ao lado da cama para poder acordar, sair do quarto e tomar café.

    Por isso a escuridão dos dias em Helsinque me pareceram deliciosas no seu relato. É super coisa de vampiro. :-)

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  7. @Humberto Mac: A claridade de Brasília (onde estou de férias agora) existe por lá, sim: no alto verão. Ai de ti se não sair de casa com óculos escuros. As noites curtíssimas, com anoitecer por volta das 23h30 e amanhecer a partir das 4 da manhã, são divertidas no primeiro e no segundo dia. Depois disso vc está pedindo pelamordedeus pra São Pedro apagar a luz lá de cima. Sem cortinas blackout não tem dorminhoco profissional que caia no sono, porque ocorre alteração no metabolismo. Como se sabe, a melatonina, hormônio do sono, apenas se sintetiza no organismo na ausência de luminiosidade. Pra quem tem distúrbios de sono, como eu, é enlouquecedor e desesperador. Também me sinto bem melhor nessa fase lobisomem/vampiro do inverno (acho que pessoas notívagas também se adaptam melhor a isso).

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