quarta-feira, 21 de setembro de 2011

Como uma luva


Embora a astronomia me informe que o equinócio de outono ocorre no dia 23 de setembro, há algumas semanas seu fenótipo já está presente em Helsinque. O sol, como novos trabalhos de bandas boas, é raro, e o vento e a chuva substituem os brilhos diversos do verão, e a hera enroscada do lado de fora do escritório já passou de verde à vermelha.
Não é mais possível sair de casa sem colocar (pelo menos) um casaco, e os guarda-chuvas e cachecois saem do armário, algo alegremente. Outro acessório que, quase sem percebermos, começa a aparecer nos bolsos e bolsas, são as luvas. Durante mais da metade do ano, proteger as mãos do frio é estratégia mais do que recomendada na convivência saudável com as temperaturas em queda.
Calçar luvas traz sensações divertidas, como cócegas no hipotálamo. Luvas não são peças tradicionais do vestuário brasileiro – quiçá nos estados do Sul, ou em certas regiões de Minas ou São Paulo. Usei luvas – cirúrgicas – regularmente, quando cuidei do reparo de livros raros, em outra encarnação dentro desta. Mas esse tipo de luvas são as mesmas usadas pelos médicos, e, dependendo da especialidade, é melhor esquecê-las tanto quanto possível.
As memórias associadas às luvas têm de ver com a ficção. O famoso boxeador, na sensacional dublagem das intermináveis reprises, derrota seu adversário no último segundo. Um rápido corte de câmera, em filme de super heroi, na cena em que ele põe o uniforme e se prepara para o clímax da história. As luvas três quartos da ruiva em preto e branco (ou da personagem de animação, décadas depois, nela inspirada). E os tantos filmes de espiões, ladrões e assassinos que usam luvas, interessados em não deixar rastros de sua presença enquanto executam secretamente suas atividades.
E aí é que surge a graça boba da coisa. Quando chega o inverno, os casacos são mais amorfos. As luvas, reforçadas, forradas, impermeáveis, sem divisões para os dedos, parecem bolinhas desajeitadas nas mãos. O importante é manter-se quente, mesmo em detrimento de uma aparência elegante. Mas antes disso tudo vem o outono... e o outono é a época em que as roupas sociais, entre ternos e sobretudos, que o trabalho me aconselha a usar no dia-a-dia, pedem luvas de couro preto, bem cortadas, justas. Perfeitas para carregar a pasta e o guarda-chuva (longo, com cabo de madeira), embora, concedo, em tempos de touch-screeen, desvantajosas para atender o celular (e eu jamais vou contar a alguém que, certa vez, entre frio e preguiça, eu usei o nariz para atender a uma ligação).
Nesses íntimos momentos públicos, pelo menos duas vezes por dia, em que calço e ajusto as luvas, em saguões e antessalas, o RPGista dormente em meu cérebro fantasia missões desafiadoras e perigosas... invasões de arquivos alheios e roubo de documentos secretos, tiros de precisão com armas de longa distância, ou um duelo no teto de um trem em movimento. No final, o mais ousado que faço com as luvas é apertar os botões para entrar ou sair do bonde, e digitar o código de segurança da entrada do prédio. Mas vale a excitação do momento.
Certa vez, no milênio passado, eu decidi sair de um emprego após ter tido recorrentes sonhos nos quais usava o fio do telefone para enforcar meu chefe de então… Hoje, embora muito mais hierarquizada, a relação com as chefias é bem mais tranquila, nada a reclamar, a não ser por charme e esporte. Mas se eu tivesse um par de luvas naquela época…

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