quinta-feira, 25 de agosto de 2011

O conto de duas Helsinques (Parte I)


[O texto a seguir faz parte da sessão “Memorabilia”, e seus eventos se passam ainda em nossa primeira semana na Finlândia]

O Marido a abraçou carinhosamente, como já fizera tantas vezes, e como voltaria a fazer muitas outras. Hábito arraigado, seu abraço era nada burocrático, e transmitia o sentimento comum em um casal jovem ou em um amor verdadeiro. Após um beijo, no canto dos lábios, o Marido se dirigiu à porta de saída e se despediu.

-Até mais, amada, vou para o trabalho...
- Cuide-se, love.


Trabalho... a Esposa parou por um momento e refletiu sobre os últimos meses. Era uma grande mudança para ambos, mas provavelmente o Marido sentiria de forma mais intensa os impactos de se mudar do Brasil e reorganizar a vida, em outro continente. Ela já tinha experiência no assunto, havia morado no exterior por quase uma década, e em condições bem mais adversas. É claro que o fato de o Marido ser diplomata facilitaria muito as coisas. Eles já se mudaram com um emprego estável e garantido, com recursos assegurados para alugar um bom apartamento, e com o apoio da Embaixada. Tudo somado, a situação do Casal era incomparavelmente mais sossegada do que a dos brasileiros que tentam a vida mundo afora, na maioria das vezes sem ter muita noção do que, de fato, encontrarão em seus destinos.

A Esposa não poderia exercer um trabalho remunerado em Helsinque. Brasil e Finlândia não haviam, até o momento, assinado um “Acordo sobre o Exercício de Atividades Remuneradas por parte de Dependentes do Pessoal Diplomático, Consular, Administrativo e Técnico”. Em outras palavras, além de eventuais trabalhos voluntários, a Esposa estava limitada a ser, exclusivamente, ao longo dos próximos anos... a Esposa. A ideia não a incomodava nem surpreendia: quando ela se casou com um diplomata, sabia que, em algum momento, acabaria tendo de abrir mão de maiores pretensões profissionais, se quisesse acompanhá-lo. A hora havia chegado, e era mais do que oportuna: o Posto para onde o Marido fora removido era muito bom, e a quantidade de trabalho em Brasília já começava a dar os primeiros sinais de prejuízo à saúde. Acumular anos de trabalho no exterior era, além de parte incontornável na carreira do Marido,  possibilidade de interromper, logo em seu início, um ciclo de stress que começara a enviar sinais bastante ruins.

Ela teria de se acostumar a reações de espanto e olhares estranhos – tanto dos amigos e amigas no Brasil quanto dos novos conhecidos na Finlândia – quando declarasse que não tinha emprego. Em uma sociedade pós-feminismo, parecia inconcebível para alguns que uma jovem mulher adulta, em plenas condições físicas e mentais, pudesse aceitar o mero papel de esposa. Por dentro, ela ria disso: sabia que não havia qualquer traço de machismo em seu casamento – pelo contrário, o Marido bem que gostaria de inverter papeis e não ter a responsabilidade de ser provedor único. Além disso, ela tinha a certeza da importância, difusa, mas inegável, que tinha no equilíbrio profissional e pessoal do Marido. “Depois de desembainhadas, as espadas tem de voltar para as bainhas. Depois da batalha, nada como repousar no colo da donzela”, comentava ele. A Esposa se sentia, na verdade, privilegiada. Sempre gostara de cozinhar, e de cuidar com atenção das chamadas “coisas de casa”. A parceria estabelecida naquele momento parecia bastante equilibrada.

Parecia injusto, para ela, era o tom de lamento na voz das pessoas comentavam que ela “não podia trabalhar”. Trabalhar, para ela, não seria só ir para um emprego remunerado e gerar renda. Uma casa bem administrada demanda providências em quantidade considerável, que vão desde o pagamento de contas até o contato com empresas prestadoras de serviços diversos, passando pela chatíssima administração dos ternos e gravatas obrigatórios para o Marido. O problema era que as pessoas, ao longo do tempo, haviam aprendido a associar o que era doméstico a algo pejorativo e de menor importância. Azar das pessoas. Ela estava feliz com sua nova vida, e sabia que, embora a situação pudesse ser considerada atípica nos dias de hoje, as recompensas eram muitas: com horários flexíveis, ela poderia ter mais tempo para ela própria e para o Marido, estudar o que bem quisesse, sair por aí tirando as fotos de flores que tanto gostava, e dar atenção especial aos amigos que futuramente os visitassem. Em dias de maior cansaço físico ou falta de inspiração culinária, tinha certeza que o Marido aceitaria contratar uma diarista e almoçar em um restaurante, para oferecer a ela uma merecida folga.

Isso sem mencionar a parte do trabalho do Marido que acabaria ecoando em sua vida. Jantares e recepções, para quem é de fora da carreira diplomática, parecem momentos de uma vida glamurosa e interessante. Mas, àquela altura, ela já sabia que um coquetel entre diplomatas não é diversão, é trabalho. Entre sorrisos e conversas aparentemente inócuas, alguns temas são sondados, informações são trocadas, contatos são estabelecidos. Não se trata de reunião entre amigos, com mero intuito de se divertir. Mesmo que a Esposa não fosse profissional das relações exteriores, nem possuísse conhecimentos mais especializados em política externa, haveria, sim, missões mais do que especiais para ela nessas ocasiões: estimular, sem dar lugar a uma falsa simpatia, o bom relacionamento com diplomatas e casais estrangeiros, e, dependendo do momento, garantir que os ambientes fossem os mais agradáveis possíveis. Caso estivesse do lado dos anfitriões, isso tudo teria de ser acompanhado por uma atenção redobrada aos bastidores, para que tudo acontecesse de forma precisa e suave. Não haveria qualquer possibilidade de vida tediosa, como apontavam alguns... seria diferente e bem-vindo.

(continua)

2 comentários:

  1. Sei que é uma característica do blog esta charmosa inconstância, no entanto, fico feliz ao ver que vocês não desapareceram completamente. Mais um texto valioso! Continuem postando... Grande abraço

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