terça-feira, 30 de agosto de 2011

O conto de duas Helsinques (parte II)


Os primeiros tempos seriam particularmente atarefados. A cidade precisava ser explorada, meio sem rumo, mas com olhar atento, para que os melhores supermercados, as lavanderias, os bancos, os restaurantes e as opções de lazer fossem mapeados. Para facilitar os deslocamentos, já que ainda não haviam decidido se comprariam um carro, era preciso conseguir os cartões da HSL, a empresa de transporte regional de Helsinque. Além disso, o Casal deveria adquirir, o mais rápido possível, linhas telefônicas e aparelhos celulares, para tornar a comunicação mais ágil. Logo viriam providências para abrir contas em banco e conseguir cartões de crédito. Em seguida, os contatos com imobiliárias, as visitas a apartamentos, a definição do local que os abrigaria por pelo menos dois anos, que acrescentaria aos afazeres o preenchimento das papeladas do contrato de aluguel e do seguro do imóvel, a instalação de internet e TV a cabo, a eventual compra de móveis... Quando tudo parecesse mais calmo, o container com a mudança chegaria do Brasil, e toda uma reorganização da casa precisaria ser feita.

Por hora, no entanto, a missão imediata era mais simples. Logo que chegaram a Helsinque, ela e o Marido foram convidados para um jantar na Residência do Embaixador. Seria uma espécie de recepção de boas vindas ao novo Secretário e a sua esposa. Algo íntimo: apenas o Embaixador e a Embaixatriz, a Ministra e o Casal que, naquele momento, ainda se acostumava com o frio. Desatento a sutilezas, como todo marido, o seu não havia pensado que seria, no mínimo, cordial levar flores para a Embaixatriz. Ao ouvir a sugestão, o Marido concordara imediatamente, e agradeceu a lembrança. Ao menos essa vantagem esse marido tinha... não era tão teimoso assim.


A Esposa se lembrou que em Rautatiasema, a estação ferroviária central, havia uma floricultura. Embora ela adorasse tulipas – que, naquele abril bastante frio, ainda podiam ser encontradas –, optou por orquídeas, mais elegantes e duradouras, como deveria ser aquela relação profissional e pessoal que iniciar-se-ia. Endireitou o cachecol e saiu do apart hotel onde estavam provisioriamente instalados. Ao atravessar a porta lateral, que ficava a uns 400 metros da Estação, teve uma sensação duplamente incômoda: além do vento gélido que a fez se contrair dentro do casaco, o cheiro dos cigarros a fez apressar o passo. O Marido já havia brincado sobre isso: “do jeito que vai, vou lembrar de Helsinque como a cidade com cheiro de cigarro”. Não que a cidade toda estivesse impregnada, mas era comum se deparar, logo na saída dos edifícios, com uma grupo de fumantes, tremendo de frio, exilados pelas leis que proibiam o fumo em locais fechados. “Eles têm mais de sofrer mesmo”, pensou. “Odeio cheiro de cigarro”.

Apesar dessa breve presença humana no início do seu trajeto, a mesma sensação de solidão e vazio, sentida em dias anteriores, permanecia. O Casal havia creditado a falta de pessoas circulando pelas ruas ao fato de terem pousado na Finlândia no fim-de-semana da Páscoa, feriado que, diferentemente do Brasil, extende-se até a segunda-feira. Mas o feriado passara, e a escassez de transeuntes ainda era motivo de estranhamento. Onde estavam as pessoas?  E as lojas?  Eram estranhas, relativamente poucas. Era uma cidade nova, uma cidade diferente, uma cultura da qual tinha referências apenas na teoria... Ainda assim, era uma capital europeia, com 500 mil habitantes, um milhão na Grande Helsinque. E, naquele momento, quase todos pareciam escondidos em algum lugar.

Ao passar pelas pesadas portas de madeira da estação, sentiu-se aliviada, tanto pela temperatura mais amena dentro da construção, quanto pela existência de gente, indo e vindo. Logo do lado de fora, havia pontos de bonde elétrico, de táxi e de ônibus. Como toda estação central, pela manhã havia uma concentração de pessoas que chegavam para seus dias de trabalho. Voltou sua atenção para a floricultura, bem próxima da porta. Lá estavam os narcisos amarelos do início da primavera, as rosas, banais como sempre, os lírios e os copos-de-leite. E nenhuma orquídea. Mas não houve tempo para que a frustração se instalasse: seus pensamentos mal haviam iniciado a busca por uma alternativa quando, com um canto do olho, a Esposa percebeu, ao longe, uma senhorita abraçada a um enorme buquê de flores coloridas, ainda que indistintas, subindo as escadas que vinham do andar de baixo. “Ei... deve haver outra floricultura por aqui”. Agradeceu com um sorriso a florista, e seguiu até o corredor onde se localizava a escada.

(continua)

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