sábado, 3 de setembro de 2011

O conto de duas Helsinques (final)


À medida em que se aproximava do centro da estação, entendia melhor a distribuição espacial do prédio. A porta mais próxima à floricultura, pela qual havia entrado, era, na verdade, uma dos acessos laterais. À direita, um enorme painel com informações sobre partidas e chegadas localizava-se acima de uma série de portas de metal e vidro, que davam para a plataforma dos trens. Se prosseguisse pelo corredor onde estava, acabaria saindo pela lateral oposta. Ao seu redor, perfilavam-se pequenos quiosques, lanchonetes, uma banca de revistas, dois ou três cafés. E pessoas, várias pessoas. “Ao menos por aqui tem gente. Bancas de revistas e cafés sempre atraem gente”.  À esquerda, um vão levava primeiro a um lance de escadas para o andar anterior, e, mais à frente, para as portas principais da estação. Ao se dirigir para a escada, de onde tinha vindo a moça do buquê, passou por caixas eletrônicos e balcões de informação turística, sem muita procura naquele momento. Parou em frente às escadas – dos lados, as rolantes para cima e para baixo, e, no meio, as estáticas. Uma placa orientava que seria aquela a direção do metrô.

“Na pior das hipóteses, ela comprou as flores em outro local, e veio do metrô com elas. Aí eu vou ter de me virar com a loja da entrada mesmo”. Resolveu investigar, e respirou, curiosa. Optou pelas escadas comuns. Um acidente em uma escada rolante, anos antes, havia deixado certo receio. Os olhos concentraram-se em identificar o local de onde as flores alternativas teriam vindo. Antes de terminar de descer o último degrau, reparou em um luminoso amarelo em que se lia PicNic. Descobriria, ao longo dos meses seguintes, que aquela franquia de lanchonetes tinha diversas unidades espalhadas por Helsinque. A fome despertada naquele momento, entretanto, nada teve de ver com o aroma de café que adornava a vitrine com bagels, croissants e muffins, e denunciavam sobre o que se tratava o estabelecimento. E o cantinho do seu olhar, meio atrapalhado por uma daquelas cabines em que se tiram fotos para documentos, antecipou a primeira grande surpresa do dia.

Caminhou alguns passos, e finalmente pode ver. A primeira associação feita foi com dos esconderijos dos vilões, nos filmes clássicos de James Bond que ela e o Marido tanto gostavam. Uma  gigantesca praça subterrânea — se é que praças podem ser subterrâneas – abria-se bem à sua frente. Galerias de lojas se multiplicavam... por um instante, foi difícil absorver a quantidade de informações visuais às quais era subitamente exposta. Um supermercado logo à direita. À esquerda, uma loja de games, que, se não interessava tanto assim a ela ou ao Marido, já era uma novidade. A Esposa compreenderia que estava em uma espécie de mezanino, entre o andar da superfície, onde ficava a estação ferroviária propriamente dita, e a estação do metrô, acessível por compridas escadas que mergulhavam para o nível inferior, onde entrevia mais lojas. Mais alguns passos, ainda estudados, e pode ver, mais ao fundo daquele vestíbulo gigante, a floricultura que procurava.


Carregou seu excitamento até lá, enquanto percebia que aquele era apenas um, dentre muitos ambientes escondidos nas entranhas de Helsinque. Vários corredores engoliam e regurgitavam dezenas, centenas de pessoas apressadas. O frio era infinitamente menor, e os dedos tendiam a procurar os cachecois para folgá-los. Os mais ousados chegavam até a abrir os casacos, abafados pelo ambiente protegido. A quase totalidade dos mais jovens ensimesmava-se em seus fones de ouvido brancos. Poucos conversavam, e certamente sem a algazarra que já vira em espaços coletivos de outros países. Ainda assim, estava ali a cidade que procurara em vão nos dias anteriores.  Àquela altura, comprar as flores para a Embaixatriz era o menor de seus estímulos. Seguindo em direção às cores da floricultura, descobriu o escritório da HSL, para onde voltaria, dias depois, para comprar seu cartão de transporte público. A loja de flores oferecia, de fato, opções em maior quantidade do que a anterior. Encontrou com facilidade uma orquídea amarela — queria transmitir uma ideia de energia, de felicidade por estarem sendo recebidos nesse novo mundo.
 
Outro amarelo — o  da inicial indefectível e onipresente do McDonald’s — praticamente não chamou sua atenção. Fez apenas um breve registro mental, para referência futura. “Em caso de pânico, o McDonald’s é sempre uma opção segura”. Experimentou um corredor diferente, e encontrou outro supermercado, ainda maior, uma Apteeki (a rede de farmácias locais), e uma enorme loja que combinava estranhamente cosméticos e DVDs. Vislumbrou outros corredores mais à frente, todos eles tomados por pessoas transitando sem perceber seu fascínio. “É aqui que eles vivem..”, não conteve o pensamento. Decidiu voltar ao apart hotel e deixar por lá a orquídea, antes de aventurar pelo formigueiro que descobrira. Não voltou pelo mesmo caminho. Subiu por uma escada próxima, e ao reencontrar o nível da rua, percebeu que estava no lado oposto da avenida que dava frente para Rautatiasema. Havia uma segunda Helsinque que se espalhava por baixo da primeira, e que multiplicava, naquele momento, tanto sua missão de explorar a cidade quanto as alternativas que a cidade desvelaria.

Logo aprenderia que Helsinque foi edificada em uma região rochosa, e os finlandeses aproveitaram as propriedades de resistência e isolamento de seu leito para constuir não apenas redes de esgoto e aquecimento, ou túneis para o metrô, mas lojas, estacionamentos, arenas esportivas, fábricas, centros de processamento de dados e até piscinas.  Com isso, criavam ambientes menos expostos às temperaturas mais rígidas do inverno, e aproveitavam de forma mais intensiva os espaços limitados da capital.


O Marido só retornaria horas depois, e ela não pretendia interromper os trabalhos na Embaixada só para dividir os novos tesouros. Ainda assim, acelerou inconscientemente o ritmo de caminhada, como se o dia fosse passar mais rápido, ao fazê-lo. Intuiu um pensamento não totalmente consciente. “Serão também os finlandeses assim?  Escassos, cinzentos e silenciosos na superfície, mas vivos e pulsantes quando descobrimos os caminhos escondidos até eles?”. Os próximos anos talvez pudessem responder.

***

Quando o Marido entrou no quarto do apart, com seu conhecido ar de cansaço, não se deixou esquecer de demonstrar interesse:

- Oi, amada. Como foi seu dia?
- Tira a farda e vem comigo. Preciso lhe mostrar umas coisinhas...

3 comentários:

  1. Um post 3-em-1, muito bom mesmo! Parabéns pelo texto. Pena que acabou. Aguardarei ansiosamente pelas próximas atualizações. Grande abraço.

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  2. Muito bom texto. Valeu a espera! Que ela seja mais curta.

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  3. Imaginei sua criança com os olhos sorrindo para as novas descobertas. Fantástico texto.

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